andar com o pé eu voo

eloise de vylder

a morte

O pescador na lida sabe que a morte
É a água doce quando encontra o sal:
Rico ecossistema, de vida sem igual.
Peixes de dois mundos encontram alimento
E caem na mesma rede, não importa a sorte;
Aceitam sua salobra sina sem lamento:
A água da foz é bênção e maldição.

desmatar – presente do indicativo

Eu como carne,
Tu comes carne,
Ele come carne.
Nós consumimos,
Vós produzis,
“Eles” desmatam.

thay

o homem mais sábio que eu conheço
tem olhar de mãe e sorriso de criança
e diz coisas tão simples quanto é simples respirar

a maçã (samsara)

Por que não se convencer, vez por todas, que felicidade não vem com camiseta de brinde, beijo ofegante ou anúncio em alto-falante? Ela não rima com toda essa roda-gigante. Já dei espiadela, de soslaio, e até sei seu endereço: é um conjugadinho modesto para além do parque das distrações. Mas lembrar o caminho, outros quinhentos… Com tantas luzes coloridas e velozes, música de realejo e a promessa de nuvens de algodão-doce, nada feito. Às vezes a consciência lampeja que voltar para casa é a única opção. Mas ignoro como quem negocia cinco minutos de despertador… É que logo ali brilha, vermelho-caramelada, uma maçã-do-amor.

uma leitura

Julguei te amar, no escuro, quando disseste meu nome. Mas não foi o teu que veio à ponta da língua (que lera com avidez as entrelinhas dos teus lábios), e sim outros, com os quais eu já preenchera a mesma lacuna do verbo amar.  Tempo passado. A ilusão tardou a conclusão difícil de soletrar. Amor, não era. E no entanto e ainda, a escuridão sem-nome se demora.

ou sereno, e todo o tempo

Ontem pensei que a gente se engana, mal-entende São Francisco: não foi de pobreza o voto que ele fez, mas de bem-aventurança. Foi compreensão de segundos, que nem bem alcanço explicar, mas que tem a ver com nada nos pertencer e tudo nos ser dado.

Coisa de deixar a gente numa beatitude que só…

Fiquei o dia todo tentando reavivar a experiência, mas só consegui uma saudade doída e uma sensação de iminência de alguma coisa – de coração sair pela boca, talvez? De chorar por me sentir tão mais longe depois de ter me sentido tão mais perto?

Faz questionar se existe outra razão de viver…

**

Cântico das Criaturas
(São Francisco)

Altíssimo, onipotente, bom Senhor,
Teus são o louvor, a glória, a honra
E toda a benção.
Só a ti, Altíssimo, são devidos;
E homem algum é digno
De te mencionar.
Louvado sejas, meu Senhor,
Com todas as tuas criaturas,
Especialmente o Senhor Irmão Sol,
Que clareia o dia
E com sua luz nos alumia.

E ele é belo e radiante
Com grande esplendor:
De ti, Altíssimo é a imagem.

Louvado sejas, meu Senhor,
Pela irmã Lua e as Estrelas,
Que no céu formaste claras
E preciosas e belas.

Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão Vento,
Pelo ar, ou nublado
Ou sereno, e todo o tempo
Pela qual às tuas criaturas dás sustento.

Louvado sejas, meu Senhor,
Pela irmã Água,
Que é mui útil e humilde
E preciosa e casta.

Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão Fogo
Pelo qual iluminas a noite
E ele é belo e jucundo
E vigoroso e forte.

Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã a mãe Terra
Que nos sustenta e governa,
E produz frutos diversos
E coloridas flores e ervas.

Louvado sejas, meu Senhor,
Pelos que perdoam por teu amor,
E suportam enfermidades e tribulações.

Bem aventurados os que sustentam a paz,
Que por ti, Altíssimo, serão coroados.

Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã a Morte corporal,
Da qual homem algum pode escapar.

Ai dos que morrerem em pecado mortal!
Felizes os que ela achar
Conformes à tua santíssima vontade,
Porque a morte segunda não lhes fará mal!

Louvai e bendizei a meu Senhor,
E dai-lhe graças,
E servi-o com grande humildade.

**

Em italiano, é uma das coisas mais bonitas sobre a terra.

isto não é dadaísmo

se tudo deus dá
e tudo deus tira
a única saída (da mentira)
é render-se ao deus-dará

uma noite, um lugar-comum

Quando estivermos acampados sobre a rocha, de mãos dadas, cobertos de escuridão e estrelas, com voz trêmula vou lhe falar da beleza fugidia de tudo isto – mãos que se unem e estrelas que brilham. (Enquanto o vento carrega nossas palavras pelo vale iluminado, sobre uma constelação de lâmpadas acesas.) E vou olhar para as linhas que se desenham no canto dos seus olhos, por onde já escorreram sorrisos e lágrimas, com um misto de ternura e temor.

Tudo isto não há de ser nada, você dirá. Tudo isto não há de ser nada… diante da eternidade desse momento.

E respiraremos fundo verdade e ilusão.

gosto…

do monólogo final do personagem Lester no filme “Beleza Americana”…

Lester Burnham: [narrating] I had always heard your entire life flashes in front of your eyes the second before you die. First of all, that one second isn’t a second at all, it stretches on forever, like an ocean of time… For me, it was lying on my back at Boy Scout camp, watching falling stars… And yellow leaves, from the maple trees, that lined my street… Or my grandmother’s hands, and the way her skin seemed like paper… And the first time I saw my cousin Tony’s brand new Firebird… And Janie… And Janie… And… Carolyn. I guess I could be pretty pissed off about what happened to me… but it’s hard to stay mad, when there’s so much beauty in the world. Sometimes I feel like I’m seeing it all at once, and it’s too much, my heart fills up like a balloon that’s about to burst… And then I remember to relax, and stop trying to hold on to it, and then it flows through me like rain and I can’t feel anything but gratitude for every single moment of my stupid little life… You have no idea what I’m talking about, I’m sure. But don’t worry… you will someday.

**

Sempre ouvi dizer que a vida inteira passa como um flash diante dos nossos olhos no segundo antes de morrermos. Antes de mais nada, esse um segundo não é um segundo em absoluto, ele se estende para sempre, como um oceano de tempo… Para mim, foi deitar no chão do acampamento dos escoteiros, olhando estrelas cadentes… E folhas amareladas, das árvores que se enfileiravam na minha rua… Ou as mãos da minha avó, e como sua pele parecia papel… E a primeira vez que vi meu primo Tony com seu Firebird novinho em folha… E Janie… E Janie… E… Carolyn. Acho que eu poderia estar puto com o que aconteceu comigo… mas é difícil ficar com raiva quando há tanta beleza no mundo. Às vezes eu sinto como se estivesse vendo tudo de uma vez, e é muita coisa, meu coração se enche como um balão prestes a estourar… E então eu me lembro de relaxar, e parar de me apegar, então tudo flui através de mim como chuva, e não consigo sentir nada além de gratidão por cada um dos momentos da minha pequena vida besta… Você não tem idéia do que estou falando, tenho certeza. Mas não se preocupe… um dia terá.

branco, lilás, dourado

quantas vezes dá
pra descrever o brilho
do sol no manacá?